Logo após o nascimento do seu filho mais velho, há nove anos, a jornalista e escritora americana Chelsea Conaboy estava feliz e encantada com o bebê. Mas, ao contrário do que esperava, não sentiu nenhum tipo de calma natural — tinha medos irracionais e pouca clareza de pensamentos e ações.
"Nos primeiros meses como mãe, a preocupação era uma espécie de zumbido constante na mente, sempre lá. Com a preocupação, vinha a culpa. E com a culpa, a solidão. Não me sentia como a mãe que meu filho merecia ou como a mulher naturalmente protetora que tanto me disseram que eu seria", conta logo no começo de O mito do instinto materno: Como a neurociência está reescrevendo a história da parentalidade (Companhia das Letras), lançado no Brasil no final de julho.
Chelsea quis entender o que estava acontecendo com ela. E se debruçou em centenas de estudos, entrevistas com especialistas e dados científicos para descobrir como o cérebro de uma pessoa muda após ter filhos.
Ao longo das 472 páginas do livro, ela compartilha histórias pessoais e os resultados dessas pesquisas.
"A ciência não descreve a mulher como alguém naturalmente dotada de amor maternal que atende todas as necessidades do bebê de forma automática. Na verdade, ao ter um filho, nosso cérebro muda para garantir a sobrevivência do bebê até que nosso coração se conecte a ele", afirma.
Ao refletir sobre o cérebro materno, Chelsea acabou caindo na constatação de que nossa sociedade se estruturou num modelo que delega a tarefa do cuidado às mulheres, como se fosse um destino biológico. E, com base na ciência, ela nos faz questionar e repensar esse formato.
A autora desafia a noção de instinto materno inato, enfatizando a adaptabilidade do cérebro de qualquer cuidador de bebês - pais, mães adotivas e as mães de casais do mesmo sexo, que, porventura, não engravidem.
Em uma chamada de vídeo, direto de sua casa no Maine, nos Estados Unidos, Chelsea conversou com a BBC News Brasil sobre maternidade, ciência, feminismo e necessidade de redes de apoio e políticas públicas para os novos pais.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - O título original em inglês do seu livro é Mother Brain ("Cérebro de Mãe"), mas você destaca que, segundo a ciência, o termo se refere ao cérebro de quem cuida, não apenas de quem dá à luz - o que pode incluir os pais, mães adotivas, casais não-binários ou do mesmo sexo. Mesmo assim, o peso do "instinto materno" ainda recai nas mulheres, em especial as que engravidam. Qual a explicação para isso?
Chelsea Conaboy - Muitas das críticas que recebi por escrever este livro vieram de pessoas que dizem que eu estou tentando desacreditar o amor materno. E isso não poderia estar mais longe da verdade. Eu amo muito meus filhos. Escrevi um livro inteiro sobre como o cérebro muda para ajudar a cuidar melhor dos nossos filhos.
Mas a ideia com a qual realmente não concordo é a de que o instinto materno é algo inato, automático e exclusivamente feminino.
A ciência conta uma história bem diferente: o instinto materno é uma ilusão.
Passei muito tempo pensando sobre como essa mensagem da ciência foi uma surpresa para mim como uma nova mãe. Por que não era algo sobre o qual já estávamos falando?
As estudiosas feministas já sabiam e vêm discutindo há muito tempo: esse conceito não vem da ciência, mas de ideias religiosas e morais sobre o que é uma mãe e o que é uma mulher.
Entendo que é algo que nos foi transmitido de geração em geração e é difícil de combater, em parte porque sentimos o poder da maternidade dentro de nós. E esse poder foi chamado por tanto tempo de instinto materno que é automático repetir. Mas, na verdade, é algo poderoso sim, mas não instintivo.
BBC News Brasil - Para esse conceito ser reproduzido por tantos séculos, alguém está se beneficiando dessa ideia - e não parecem ser as mulheres. Como acha que podemos quebrar esse mito?
Conaboy - Essa é a pergunta de um milhão de dólares, não é?
Acho que uma maneira importante de mudar isso é continuar falando sobre isso, seja qual for o papel que desempenhamos na sociedade. No meu caso, foi como escritora. Mas seja você cientista, político ou líder empresarial, precisamos usar fatos e evidências para mudar essas narrativas.
Aqui nos Estados Unidos atualmente, mulheres como eu - mães que estão escrevendo sobre essa narrativa mais verdadeira da parentalidade (e da maternidade), recebem muitas críticas de conservadores e de homens no poder. E penso que recebemos essas críticas, em grande parte, porque algo está funcionando. Ter essas conversas mais honestas ameaça o poder estrutural do patriarcado.
BBC News Brasil - Os Estados Unidos estão passando por um momento político intenso, com uma eleição presidencial em que os direitos reprodutivos das mulheres são uma das pautas mais quentes. Como você acha que os estudos do seu livro podem ajudar a assegurar o direito das mulheres de escolher serem ou não mães?
Conaboy - Grande parte do que motiva ativistas antiaborto é a ideia de que as mulheres são destinadas a serem mães, que foram feitas para isso e que, naturalmente, já têm tudo o que precisam para isso. E desconstruir essa crença é uma parte importante.
E é por isso que, por exemplo, aqui nos Estados Unidos, temos essa luta por justiça reprodutiva e acesso ao aborto, mas não temos licença maternidade remunerada ou creche acessível. Porque muitos pensam que nascemos prontas. Não temos muito do que é necessário para criar uma criança, porque existe essa ideia de que as mulheres já têm tudo.
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